domingo, 13 de agosto de 2017

POBRE NEM IPOD

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Gosto de escrever sobre o que me toca. O que me toca não me deixa sossegado assim como não deixo sossegado o que me toca. Fiquei à flor da pele, ao tomar ciência da música-poema Pobre Nem Ipod, cuja autoria emana da criatividade do escritor DuduLuizSouza. Tomem nota do nome completo do poeta em destaque: Luiz Eduardo Rodrigues de Almeida Souza. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2011) e graduado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (2003), o multiartista compôs a seguinte façanha e repercutiu a voz dos ignorados pela globalização de teor mais excludente:

“Pobre não pode, nem (a)ipod, ou pode?, tão pouco com tanta tecnologia vinda da maçã transnacional já que enfim we are champions dentro deste world same as the vermelha apple que aquela professora ganhou in início deste movie da nação way of life, descarrilhada ao longo da vida e sem visão down on the floor do jardim deste cemitério globalizante da morte those personagens periféricas that território chamado planet terra que, nesta parada do espaço, comeu o vômito digitalizado com sabor de chip guardado naquele website intitulado humanity globolitarizada, ou humanidade globalmilitarizada”.

O texto do poeta mineiro dialoga fecundamente com a antropofagia modernista proposta por Oswald de Andrade, digerindo, com gosto criativo, Willian Shakespeare, em Hamlet. To be or not to be? That’s the question! – escreve o dramaturgo inglês. Na periferia do capitalismo, o poeta paulista, como um verdadeiro ponta-de-lança, dispara: Tupi or not tupi? That’s the question!. Enquanto Shakespeare reivindica o protagonismo do “ser” (to be) diante do “ter” (not to be), considerando o contexto da peça em questão, na qual a família dirigente do Reino da Dinamarca se dissolve em frangalhos, por conta de acirradas disputas patrimoniais entre os seus membros, Oswald de Andrade destaca o protagonismo indígena no processo de constituição e desenvolvimento da sociedade brasileira. DuduLuizSouza, investido de experimentalismo poético ímpar, parece sugerir: Ipod or not Ipod? That’s the question!.

A cultura digital é o novo paraíso artificial da vez, reforçando mais uma vez a prática histórica de que a balança comercial do mundo favorece os produtos tecnológicos de maior valor agregado. Fernando Henrique Cardoso reeditado: uma Neoteoria da Dependência toma corpo, e o Brasil, na tentativa de conciliar Chiclete com Banana, continua banguela e exportando o melhor de sua comida. Somos um país tecnologicamente modificado, onde dividimos a atenção de nossas mãos entre o passado tacape e o futuro celular. Estamos conectados em rede, menos os pejorativamente chamados de analfabytes. Como é cruel a estigmatização generalizada, isto é, a “humanity globolitarizada”, segundo o parecer preciso do poeta, mergulhado no torvelinho histórico do seu tempo.  DuduLuizSouza trata bem a ferida: existem poucas maçãs para muitas Evas. O modelo globalização-titanic continua. Não têm botes salva-vidas para toda a tripulação: logo, prioridade para os cidadãos de “primeira classe”. Steve Jobs, Midas cibernético, morreu e guardou para si a fórmula de transformar em ouro tudo o que toca. Nas palavras do poeta mineiro, andamos desgovernados nos trilhos governados pelo american way of life. Maneira soft de dizer com todas as letras: “capitalismo parasitário”, conforme adverte Zygmunt Bauman.

Na esteira do refletir proposto por DuduLuizSouza, fica a pergunta: por que o Brasil, à maneira neoliberal, “comeu o vômito digitalizado com sabor de chip guardado naquele website intitulado humanity globolitarizada”? Bauman, em Capitalismo Parasitário (2010), explica: “A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção. Em geral, as políticas do Estado capitalista, ‘ditatorial’ ou ‘democrático’, são construídas e conduzidas no interesse e não contra o interesse dos mercados; seu efeito principal (e intencional, embora não abertamente declarado) é avalizar/permitir/garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado”.

Considerando as palavras do escritor mineiro, por trás dos escombros do “cemitério globalizante” (agonizante!), encontra-se um contexto sombrio e bombástico, literal e metaforicamente falando. A respeito, Ricardo Silvestrin, em O menos vendido (2006), canta a pedra: “caiu o muro de Berlim/e o socialismo veio abaixo/caíram as torres gêmeas/e o capitalismo foi pra cima”. Preferimos confiar nas forças armadas a acreditar na leveza desarmada. A militarização até os dentes de chumbo do sistema se afirma até nas lágrimas de hipocrisia choradas pela “verba”, diante do “verbo” em estado terminal.

Em um mundo falsamente integrado, compreende-se o porquê do hino apoteótico We are the champions! Mas, como ficam os “perdedores” nesta “aldeia global”? Os fracos não têm vez? Sobrevivem só os mais fortes? Sustentamos um modelo insustentável de desenvolvimento: consumo de século XXI, mas cidadania de século XIX.  Já em 1821, Hegel, ao analisar a sociedade capitalista nos seus primórdios, estabeleceu, em Princípios da Filosofia do Direito, que a pauperização econômica acarretaria enormes desvantagens em termos de educação, formação profissionalizante, cultura, grau de informação, sentimento de justiça e autoestima. O “desfavorecimento”, mesmo em apenas uma área parcial, produz uma “reação em cadeia de exclusão” que resulta, não em último lugar, na “pobreza política”. Nesse sentido, o poema de DuduLuizSouza nos revela que se podemos falar de “globalização”, trata-se de uma globalização sob a lei do capital; em outras palavras, a mundialização é uma monetarização. O capitalismo pode conviver com isso, mas a democracia, não.


* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

domingo, 27 de novembro de 2016

EDUCAÇÃO E CIÊNCIA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O conceito de educação está precisamente relacionado com o desenvolvimento, no sentido de cada um de nós se tornar melhor pessoa, e é revestido de uma forte componente ética e moral. Este assume também um sentido mais pleno, na medida em que estamos conscientes da nossa condição de seres perpetuamente inacabados, o que abre caminho a que o ser humano possa progredir na sua humanidade, e por isso se eduque. Os gregos usavam a palavra nous para designar a compreensão. Uma pessoa que tem o nous é a que compreende o que está a acontecer e a que faz uso do pensamento racional. Aristóteles distingue o nous teorético, aplicado aos primeiros princípios da ciência demonstrativa, a qual trata das verdades necessárias, e o nous prático que percebe as características relevantes de casos particulares, o qual trata de verdades contingentes.

O conhecimento é o somatório das informações que adquirimos, é a base daquilo que chamamos de cultura. Já a sabedoria, por outro lado, é o reflexo da vivência, na prática, quer pela experimentação, quer pela observação, da utilização dos conhecimentos previamente adquiridos. “A sabedoria é a procura de um método de vida e de ação, a construção de si próprio pela concretização das virtudes: a justiça, a prudência, a força e a temperança; a fé, a esperança e a caridade, dando acesso às três virtudes segundo Platão: o belo, o bem e o verdadeiro. Mas o sábio é também o acordado: aquele que se espanta com tudo, que desfruta tudo, aqui e agora. Para isso, é necessário dominar o tempo: encontrá-lo, pará-lo, saboreá-lo” – salienta o filósofo francês Jean Guitton, em O Livro da Sabedoria e das Virtudes Reencontradas (1999).

O questionamento é algo próprio da condição humana. Durante muitos períodos e ainda hoje o ser humano é direcionado para tudo que é externo ao eu; no entanto, a sabedoria perseguida por longos períodos está intrínseca à condição humana, fazendo-se presente no ser. Sócrates extrai do jovem geômetra Teeteto três definições de conhecimento (epistemologia): (1) a episteme como sensação; (2) a episteme como opinião verdadeira; e, (3) a episteme como opinião verdadeira acompanhada da explicação racional. Em torno destes apontamentos, Sócrates, interessado nas ciências, põe uma questão para o debate: “aprender não é tornar-se mais sábio acerca do que se aprende?”. Conhecimento traz informação, sabedoria traz transformação.

Assim abre Aristóteles uma de suas obras fundamentais, a Metafísica: “por natureza, todo homem deseja conhecer” (livro I, cap. 1). Em seguida traça a distinção entre três tipos de saber, ou talvez de etapas na busca do saber. Adaptando um pouco a terminologia, temos: (i) Conhecimento por experiência sensorial direta: restringe-se aos objetos e eventos individuais, e informa simplesmente acerca do que é. (ii) Conhecimento técnico: engloba leis gerais, mas dirige-se apenas à questão de como é. Basta, pelo menos num primeiro momento, para dirigir nossas ações. (iii) Conhecimento teórico: também de tipo geral, procura responder a questão de por que é. Esse é o domínio da ciência propriamente dita, no qual se investigam as “causas” e “princípios” dos fenômenos.

Curiosamente, foi apenas no século XX que houve um reconhecimento mais geral de que a obtenção de conhecimento universal e certo acerca dos processos naturais é um ideal que deve ser abandonado, pela inatingibilidade. Em A lógica da pesquisa científica (1955), Karl Popper sugeriu que entendêssemos o conhecimento científico não como episteme (que requer certeza), mas como doxa (opinião). O progresso da ciência seria, assim, o resultado de um processo constante de conjeturas e refutações, de substituição de hipóteses falseadas por hipóteses melhores e não falseadas, porém sempre falseáveis. Embora essa visão da ciência aparentemente rompa de forma radical com a noção original, há um elemento importante no ideal clássico que Popper procurou preservar e defender, mediante uma argumentação cerrada: o realismo. Essa posição filosófica é, em termos simples, a de que, embora falíveis, as teorias científicas devem ser entendidas como tentativas sérias, e cada vez melhores, de descrever uma realidade objetiva, ainda quando transcenda o nível dos fenômenos, ou seja, aquilo que é diretamente perceptível aos sentidos. O empreendimento científico continua, nessa perspectiva realista, dando vazão da melhor forma possível ao nosso arraigado desejo de compreender o mundo real, de descobrir como e por que funciona.

Em linhas gerais, a educação e a ciência estão relacionadas tanto na busca do desenvolvimento das potencialidades interiores do homem, cabendo ao educador apenas exteriorizá-las, como na revelação do conhecimento que o homem adquire através da experiência. Na visão dos pedagogos modernos, o processo educacional não reside apenas nas escolas, pois ela não é a única responsável pela educação. A educação tem uma dimensão maior do que propriamente ensinar e instruir, o que significa dizer que o processo educacional não se esgota com as etapas previstas na legislação. A Educação, em sentido amplo, representa tudo aquilo que pode ser feito para desenvolver o ser humano e, no sentido estrito, representa a instrução e o desenvolvimento de competências e habilidades.

Educar e ser educado é saber transitar entre os terrenos da mínima convergência e da máxima divergência. Quer ver um exemplo? Pedro Bandeira, em Gente de estimação (1996), lança questões instigantes a respeito do direito de propriedade: “Há homens que acham que um elefante pertence ao seu dono e ninguém tem nada com isso. Outros acham que um elefante não deve pertencer a ninguém. Acham que o elefante deve pertencer ao próprio elefante”. Quando estamos carecas de saber, evitamos questões cabeludas. Logo, elas que melhor representam o processo capaz de nos libertar de uma condição de ignorância.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

CIÊNCIA, TECNOLOGIA E IRRESPONSABILIDADE

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


É sabido que a expressão “Revolução Industrial” foi aplicada às inovações técnicas que alteraram os métodos de trabalho tradicionais e a partir das últimas décadas do século XVIII, propiciaram um grande enriquecimento econômico. A essência da Revolução Industrial, ocorrida primeiramente em solo inglês, assentou-se no princípio de que a mudança é a norma. Inventa-se algo e, em pouco tempo, uma nova técnica ou um novo instrumento mais eficiente torna o anterior obsoleto. A Revolução Industrial também promoveu a fábrica como importante local de trabalho; os capitalistas tornaram-se os detentores dos meios de produção (terra, equipamentos, máquinas); o trabalhador, contratado livremente, passou a receber salário, podendo se deslocar de um emprego para outro. A Revolução Industrial alterou profundamente os meios de produzir, estimulou e provocou a competição por mercados internos e externos, e além disso fez com que o trabalho humano passasse a ser combinado de forma sistemática às máquinas e inovações tecnológicas.

Entretanto, o carro-chefe dos tempos modernos não conduziu todos os homens ao paraíso, pois não conteve os efeitos deletérios do progresso material sobre a conduta moral. O ritmo urbano acelerado e as mudanças econômicas e políticas, bem como o desenvolvimento da ciência e da técnica, alimentaram a ideia de que a vida em sociedade é fruto do trabalho e da invenção humana. Quem, então, põe ordem no mundo? Não predomina mais a visão religiosa, e sim o entendimento de que os homens são responsáveis pelos rumos da sociedade. A necessária regulação em defesa de regras e condutas morais no campo econômico nasceu de uma realidade contestatória: vale tudo para ganhar dinheiro? Esmiuçando a questão, a Legião Urbana, na música “Fábrica” (1986), fez uma importante leitura do processo de industrialização a contrapelo:

“Nosso dia vai chegar/Teremos nossa vez/Não é pedir demais/Quero justiça/Quero trabalhar em paz/Não é muito o que lhe peço/Eu quero um trabalho honesto/Em vez de escravidão/Deve haver algum lugar/Onde o mais forte/Não consegue escravizar/Quem não tem chance/De onde vem a indiferença/Temperada a ferro e fogo?/Quem guarda os portões/Da fábrica?/O céu já foi azul/Mas agora é cinza/O que era verde aqui/Já não existe mais/Quem me dera acreditar/Que não acontece nada/De tanto brincar com fogo/Que venha o fogo então/Esse ar deixou minha vista cansada/Nada demais”.

Faltou à Revolução Industrial a revolução do discernimento, pois “aqueles que se entregam à pratica sem ciência são como o navegador que embarca em um navio sem leme sem bússola”, conforme advertência feita, desde o Alto Renascimento, por Leonardo da Vinci. Em torno do conhecimento e da ciência, encontram-se a necessidade humana do saber, o fenômeno do poder, de dominação da realidade e, por certo, a liberdade do homem e suas limitações. Alfred North Whitehead, em seu livro A função da razão (1938), existe uma função prática, desveladora das formas e modos de transformação da existência humana “numa boa existência, e transformar uma boa existência numa existência melhor ainda”. Esta é a Razão Prática, que podemos relacionar à tecnologia. Outro aspecto da função da Razão coloca-se acima das tarefas práticas do mundo, busca uma compreensão da realidade e cumpre sua função quando o entendimento é alcançado. É a Razão especulativa “e o progresso que ela busca é sempre o progresso de uma melhor compreensão”. Podemos apontar aqui o caminho da Ciência.

Infelizmente, normal tem sido os políticos e estadistas usarem as pesquisas da ciência e os avanços da tecnologia em projetos de dominação em vez de cooperação pela paz. Em 1938, o presidente Franklin Delano Roosevelt, autorizou o início de pesquisas sobre a liberação da energia do átomo de minerais radioativos. O físico Albert Einstein reuniu cientistas em torno desse projeto chamado Manhattan, desenvolvido em Alamogordo, Califórnia. Sempre foi dito a ele que o objetivo seria abrir uma nova fronteira na ciência. Em 1945, morto Roosevelt, o presidente Harry S. Truman autoriza o lançamento de bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, matando 300 mil japoneses naquele final dramático da II Guerra Mundial. Einstein calou-se, mas abandonou as pesquisas para dedicar-se a estudos de física e conferências sobre a paz. É sempre assim: a ciência pesquisa pensando na paz e no bem, mas os estadistas acabam usando os inventos em conflitos ou pressão estratégica e econômica sobre os mais fracos e crédulos.

Em Tempos Modernos (1936), Charles Chaplin destaca como o desenvolvimento alienado da tecnologia e da ciência estava desumanizando a humanidade. A primeira imagem é de um relógio: são quase seis da manhã. Depois dos créditos do filme, lemos na tela: “Tempos modernos. Uma história de indústria, de empreendimento individual – a humanidade em sua cruzada em busca da felicidade”. Em seguida, como se estivéssemos posicionados num ponto mais alto, vemos um rebanho de ovelhas andando. Entre várias ovelhas brancas, apenas uma negra. Rapidamente a imagem do rebanho é substituída por outra, também filmada de cima: operários apressados saem do metrô em direção à fábrica. Chegando lá, vários operários trabalhando em cadeia: é uma linha de montagem. Os movimentos dos homens são rápidos e repetitivos, ritmados e precisos, como se seus corpos também fosse máquinas. Não sabemos o que eles estão produzindo – será que eles sabem? –, mas o certo é que não podem parar. Enquanto os operários, com uma ferramenta em cada mão, encaixam parafusos ou apertam roscas de maneira mecânica sobre placas em uma esteira que corre à sua frente, não é possível conversar, olhar para o lado ou deixar o pensamento vagar. A máquina enguiça, mas “os sonhos não envelhecem”, como diria Márcio Borges, o que ressalta o diferencial humano para além do apito da fábrica.

* Professor da Faculdade JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O ENCANTO DA REVOLUÇÃO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

A Revolução Cubana de 1959 derrubou um ditador corrupto, Fulgêncio Batista, que representava os interesses de uma elite local associada aos Estados Unidos. Foi, portanto, uma revolução nacionalista contra um esquema de poder clássico – o da associação do império com elites locais dependentes. Mas ocorreu no auge da Guerra Fria e, dada a rejeição radical que teve do governo americano, inconformado com a nacionalização de empresas, não demorou muito para se tornar uma revolução comunista. A Revolução Cubana foi bem-sucedida em construir uma sociedade bastante igualitária, que incluiu a universalização com boa qualidade dos cuidados de saúde e da educação, mas não logrou alcançar a fase da industrialização complexa que é necessária para o desenvolvimento econômico rápido – para o alcançamento. Ao pensar no povo cubano e em sua grande luta, não posso deixar de afirmar minha crença no desenvolvimento humano, que, porém, só será pleno se, além de democrático, for socialista; se tiver no horizonte, além da liberdade, uma suprema igualdade de condições de vida.

Para o sociólogo Florestan Fernandes, em sua obra Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana (1979), por conta desse grande acontecimento histórico, “a América Latina tem uma alternativa histórica, essa alternativa não está no capitalismo, ela não é aberta pela democracia burguesa, não é aberta pelo imperialismo, não é aberta pela internacionalização da economia capitalista, ela é aberta exatamente pelo socialismo. A via pela qual Cuba chegou ao socialismo é muito peculiar. Eu não diria, como Che, que nesse sentido a experiência de Cuba vai ser paradigmática, vai se repetir. Agora, essa revolução sim, porque esses povos não têm alternativa”. Florestan Fernandes também põe em destaque a participação de Fidel Castro no processo revolucionário cubano. E enfatiza também Che Guevara, um outro fundamental representante do espírito revolucionário. Ambos, por conseguinte, constituíram os pilares do processo que levou Cuba a romper com o poder que vem de fora: o espanhol colonizador e o norte-americano imperialista.

Foi em nome das demandas da massa de desamparados, famintos e explorados historicamente que o governo revolucionário priorizou agudas transformações sociais no campo e na cidade. Para aprofundar o processo revolucionário, fez-se urgente superar as relações mercantilizadas do passado e enfrentar as pressões e interesses contrarrevolucionários burgueses. Tal superação é viabilizada pelas Leis de Reforma Agrária, a partir de maio de 1959 e em outubro de 1963, com a estatização das propriedades rurais e a ampliação de mecanismos de promoção de qualidade de vida, no campo e na cidade. As novas orientações do planejamento central revolucionário priorizaram a industrialização do campo, o incremento das atividades de mineração e a urbanização do campo, dentre outras iniciativas. O importante era romper com o modelo de crescimento desigual presente na história cubana. Assim também foram priorizadas as políticas públicas de saúde, alimentação/nutrição e habitação, com especial atenção à educação e às políticas de geração de postos de trabalho. O analfabetismo foi praticamente erradicado em Cuba com a exitosa Campanha de Alfabetização do ano de 1961, em todo o país.

Seguindo os princípios do herói cubano José Martí, predominaria o modelo que articula o estudo com o trabalho. Graças aos esforços e cooperação, a população cubana destaca-se pelo elevado nível de escolaridade e de usufruto de serviços de saúde pautados sob a lógica da prevenção e do direito universal, com a promoção de iniciativas como o Programa de Médico da Família. Convém ressaltar que o modelo de saúde cubano nasceu ainda nos tempos da guerrilha, na Sierra Maestra, quando os camponeses eram atendidos por Che Guevara e seus companheiros profissionais de saúde. Como presidente de Cuba, Fidel Castro foi se agigantando como uma espécie de herói latino-americano: tanto como líder de revolução, quanto como líder da resistência às forças dos Estados Unidos, e sobretudo como líder de um governo comprometido com a justiça social, sem perder o vigor transformador. Não à toa Fidel Castro advertiu que “uma revolução não é um mar de rosas. É uma luta de morte entre o futuro e o passado”.

Revolucionário para alguns, tirano para outros, Fidel Castro, destemido e carismático, gabava-se por ter um “colete moral” que o protegia sempre dos ataques dos oponentes, em especial, da maior potência do mundo que não conseguiu apequenar a ilha da rebeldia, mesmo impondo a ela uma série de embargos econômicos. Reconhecendo a importância de Fidel Castro como liderança revolucionária, o renomado historiador Eric Hobsbawn, em O breve século XX: 1914-1991, chegou a ressaltar que “provavelmente nenhum líder no breve século XX, uma era cheia de figuras carismáticas em sacadas e diante de microfones, idolatradas pelas massas, teve menos ouvintes céticos ou hostis que esse homem grande, barbudo, impontual, de uniforme de combate amassado, que falava horas seguidas, partilhando seus pensamentos um tanto assistemáticos com as multidões atentas e crédulas (incluindo este escritor). Uma vez na vida, a revolução foi sentida como uma lua-de-mel coletiva”.

A morte de Fidel Castro, aos 90 anos, acontece no momento que em Cuba, o que se procura é uma alternativa que, por um lado, não recaia numa saída neoliberal, de esvaziamento do poder do Estado e de autonomia do mercado, nem, por outro, na de um socialismo estadolátrico no qual o Estado se apresenta como único espaço no qual qualquer relação social pode ser aceita. O encanto da revolução não se desmancha no ar. Sai fortalecido como uma experiência vivida e refletida por seres humanos, que não são apenas massa de manobra de um Estado personificado em uma liderança carismática, mas, sim, agentes do seu próprio destino.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A UNIVERSIDADE NECESSÁRIA


Estudos sobre a formação da sociedade brasileira constatam como as dinâmicas estruturais da economia, da política e da legislação produziram ilhas de abastados e de privilegiados e uma miríade de desprovidos. Não se enxergavam pessoas, mas o seu valor segundo o quanto elas podiam produzir e consumir. Com a República, nós nos tornamos cidadãos sem os direitos republicanos e com a imensa tarefa de conquistar os direitos sociais. Foi assim na educação básica e na superior, visto que as elites nacionais criaram estruturas e instituições no país, voltadas para a formação dos seus bacharéis. Esta situação de formar bacharéis e de omitir os direitos e sociais da população estruturou a formação da sociedade brasileira. O não reconhecimento dos bens públicos, as práticas neopatrimoniais e a apropriação dos bens materiais e imateriais por tradição familiar são elementos substanciais enraizados na trajetória da educação do país.

Foi contrariando esse contexto que Anísio Teixeira (1900-1971) se fez firme na defesa da escola pública gratuita e laica, defendendo que educação não é privilégio, mas que todos têm direito a ela. Darcy Ribeiro (1920-1995) também foi decisivo ao se empenhar nos estudos do processo civilizatório que revelaram as circunstâncias culturais constituintes da identidade do povo brasileiro. A esses intelectuais se juntaram Oscar Niemeyer (1907-2012) e Cyro dos Anjos (1906-1994) para projetar e implementar a Universidade de Brasília (UnB). Conduzida pelos pensadores citados, a comissão, instituída pelo então presidente da República, Juscelino Kubistscheck (1902-1976), por meio da Lei nº. 3.998, de 15/12/1961, viabilizou a concretização desse projeto de educação audacioso, no contexto de transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília.

Segundo seu Plano Diretor (FUB, 1962), a UnB, chamada por Darcy Ribeiro de “universidade necessária”, tem como compromissos: a) formar cidadãos responsáveis, empenhados na procura de soluções democráticas para os problemas com que se defronta o povo brasileiro na luta pelo desenvolvimento; b) preparar especialistas altamente qualificados em todos os ramos do saber, capazes de promover o progresso social pela aplicação dos recursos da técnica e da ciência; c) reunir e formar cientistas, pesquisadores e artistas e lhes assegurar os necessários meios materiais e as indispensáveis condições de autonomia e de liberdade para se devotarem à ampliação do conhecimento e à sua aplicação a serviço do homem.

O que vem, entretanto, impedindo que a universidade e a escola caminhem juntas no sentido de alavancar planos diretores dessa magnitude, em matéria de ensino superior? Em um milênio de incertezas, como o que começamos a viver, nunca foi tão importante a presença de um professor bem formado no seu campo de estudos, em termos dos valores éticos e humanos que dão sentido às práticas educativas e com visão interdisciplinar das ciências pedagógicas. A Licenciatura não é desenvolvida na perspectiva de formar o licenciado, ou seja, o professor, mas o enfoque predominante é, ainda, a formação do bacharel. Como no Brasil a opção histórica foi a de delegar às universidades, centros e faculdades a missão de preparar o magistério, cumpre encontrar alternativas para que esse objetivo se cumpra em sua plenitude, malgrado estarmos, ainda, distante desse avanço.

Ainda sobre o tema em questão, outro grave problema se deu porque o sucesso em valorizar a pesquisa ocorreu à custa de um relativo divórcio entre a formação dos professores e as universidades, comprometendo uma das razões de sua criação no Brasil. O desprestígio social do professor da educação básica contradiz qualquer discurso sobre a importância da educação. Ademais, décadas de afastamento entre a universidade e a escola básica põe em dúvida a capacidade de uma em formar quem vai trabalhar na outra. Daí a importância de uma formação na escola, como também é importante para o exercício da profissão médica a residência num hospital credenciado. Assim, vem se perdendo a finalidade principal do ensino que, como estabelece o artigo 205 da Constituição, deve visar ‘‘o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’’. O professor Miguel Reale, jurista, filósofo e ex-reitor da USP, fixa três finalidades do ensino: a) formação da personalidade do educando, tanto do ponto de vista físico quanto ético; b) dar-lhe consciência de seu papel na sociedade para o exercício da cidadania; c) ministrar-lhe os ensinamentos exigidos e facilitar o acesso aos postos de trabalho, num sistema de produção cada vez mais automatizado.

Pensar a função social da educação implica problematizar a escola que temos na tentativa de construirmos a escola que queremos. Para dar sustentação às contínuas evoluções, a escola precisa ressaltar um ensino que crie conexão entre o que o aluno aprende nela e o que ele faz fora dela, conexão entre o ensino formal e o mundo do trabalho, entre o conhecimento e a vida prática do estudante. Os conteúdos curriculares devem estabelecer a relação entre teoria e prática, através de situações próximas da realidade do aluno, permitindo que os conhecimentos adquiridos melhorem sua atuação na vida cotidiana. É preciso englobar também a compreensão do conhecimento enquanto bem social que só pode ser produzido, criticado e transmitido em benefício da sociedade em instituições plurais e livres que desfrutem de plena autonomia e liberdade acadêmica. Desse modo, a universidade não pode ser reduzida aos valores econômicos, pois há a necessidade de perseguir o sentido ético e social do conhecimento e da formação, componentes fundamentais da ideia de educação integral.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

FERNANDO BRANT, CRÍTICO DA IMPRENSA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*


Toda atividade crítica é logo entendida no sentido de corrigir, constatar e suprir erros e deficiências. Muito além da idéia de criticar para progredir, o media criticism nasceu com o sentido de resgatar a função social dos meios de comunicação, que muitas vezes é esmagada por deslizes éticos cometidos ilimitadamente pelos media. Nesse contexto, surge a essência da expressão media criticism – ou crítica da mídia –, onde a existência desses críticos é importante quando o direito à informação não é direcionado em seus múltiplos sentidos: os veículos informando ao público e o público se informando sobre os veículos. 

No texto "Media Criticism: um espaço mal-dito" (1982), Alberto Dines argumenta que o crítico deve abnegar um espaço de destaque na profissão para que sua vigilância não esteja presa aos limites das organizações: "Ridicularizaram, criticaram, desmascararam jornais, jornalistas ou desempenhos jornalísticos que em sua ótica estava errados. Mas não feriam a estrutura nem o processo como um todo [...]. O media critic não pode focalizar desempenhos ou comportamentos sem enquadrar a estrutura que cria, estimula e orienta tais desempenhos ou comportamentos [...]. O media critic que bombardeia áreas sensíveis de determinado veículo ganha fatalmente o estigma de maldito pelo resto da instituição [...]. O media critic deve capacitar-se de que é um maldito, um renunciante, abrindo mão de um lugar ao sol no establishment. Caso contrário, suas posições serão mal-ditas, isto é, levianas".

A imprensa é, portanto, um importante elemento de mediação. Isto porque é, ao mesmo tempo, uma força política da sociedade, como também uma interlocução com o poder na função de fiscalizar a prática deste, alertando a população, a quem idealmente esta serve, dos abusos cometidos e privilégios praticados que não em benefício da sociedade. Logo, é intrínseco a ela reconhecer as vozes do público e dar a ele espaço para exercer sua cidadania. Porém, se a imprensa – que tem como principais funções intermediar as relações de poder, fiscalizar as forças da sociedade e informar os cidadãos de forma independente – está comprometida com os interesses privados, que órgão haveria de regular o exercício da própria imprensa para que o seu fim fosse, efetivamente, alcançado, e garantisse ao leitor seu papel também de cidadão?

Se de um lado a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt defendia que “a comunicação cuida da assimilação dos homens, isolando-os” e “todos os meios de comunicação altamente desenvolvidos só servem para fortalecer as barreiras que separam entre si os seres humanos”, Jürgen Habermas rompe com essa perspectiva e propõe o conceito de “ação comunicativa”. Ele defende, como alternativa, a “fabricação de opiniões”, a reinvenção do espaço público no fazer comunicação com a extensão da participação da sociedade, numa “razão comunicativa, de natureza intersubjetiva, que se constitui no curso da interação social entre os homens”. A razão comunicativa de Habermas retira a mídia da sua condição exclusivamente de manipulação e emancipa o receptor da condição de alienado, abrindo a questão às mediações e reinventando o sujeito.

As teorias da recepção inserem no debate as condições sociais de produção de sentido, tendo a “informação como processo de comportamento coletivo e os conflitos de interesse em jogo na luta por produzir, acumular ou veicular informações e, por conseguinte, os problemas da desinformação e do controle”. Entra em jogo a perspectiva de um receptor produtor de sentido. Insere-se o conceito de criticidade por parte do sujeito e de elementos mediadores, de ressignificação da cultura e do indivíduo. Dá-se lugar às relações constituídas nas relações, sendo o espaço dos meios de comunicação elemento estratégico num processo de negociação de sentidos.

Nesse sentido, a responsabilidade das mídias é enorme, mas, como estão muitas vezes comprometidas com interesses e valores pessoais – como a maioria está organizada em conglomerados de empresas privadas – escapam à defesa dos direitos dos cidadãos na comunicação e utilizam a sua força para abastecer sistemas de significação e representação cultural, em detrimento do exercício real da cidadania e da democracia. A respeito, o saudoso compositor e cronista mineiro, Fernando Brant (1946-2015) se apresentou arrojadamente como crítico da mídia, no texto “O lixo”, publicado no jornal Estado de Minas, de 24/02/2010: 

“Pensando no lixo, entro no mundo do lixo. Os detritos mais asquerosos estão nos jornais de todos os dias, que escancaram injustiça, violência, corrupção, mentiras, preconceitos. A desumanidade impera nas páginas. Ou então, essas se calam diante dos poderosos, aceitando passivamente a mentira, a ignorância e idiotia de mitos fabricados para enganar a maioria. O que vale para a imprensa escrita se multiplica quando assistimos aos meios audiovisuais. E as opiniões descabeladas que circulam pela rede digital? Será que o país foi sempre assim, desmiolado e sem qualidades, incapaz de pensar e produzir ideias, políticas, obras e espetáculos inteligentes?

É bom então que eu jogue ao lixo esses cadernos jornalísticos imprestáveis. E que emudeça o televisor, jogue fora o controle remoto, que nos oferece um circo de horrores e mau gosto. Parar de gastar o tempo de viver com o que não é essencial. Aproveitar o dia e a vida.

Não sei por onde anda meu companheiro de peladas de rua que, adolescente, encontrei trabalhando num caminhão de lixo. Pensando nele e nos profissionais da boa limpeza urbana, gostaria que houvesse, também, um serviço de coleta de porcarias culturais, políticas e sociais.

Enquanto esse sonho não se realiza, entro em meu refúgio e mergulho em leitura e releitura de Guimarães Rosa. Isso, sim, um luxo”.


* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

ESCOLA SEM PARTIDO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Uma escola sem partido está muito longe de uma educação democraticamente orientada. A educação moral pode ser um âmbito de reflexo que ajude a: detectar e criticar os aspectos injustos da realidade cotidiana e das normas sociais vigentes; construir formas de vida mais justas, tanto nos âmbitos interpessoais como nos coletivos; elaborar autônoma, racional e dialogicamente princípios de valor que ajudem a julgar criticamente a realidade; conseguir que os jovens façam seus aqueles tipos de comportamentos coerentes com os princípios e normas que pessoalmente construíram; fazer com que adquiram também aquelas normas que a sociedade, de modo democrático e visando à justiça, lhes deu. Dito de outro modo, a educação moral quer colaborar com os educandos para facilitar o desenvolvimento e a formação de todas aquelas capacidades que intervêm no juízo e na ação moral.

As escolas devem ser tomadas como “comunidades democráticas”, onde sejam respeitadas a liberdade de expressão e a responsabilidade argumentativa. A disciplina escolar remete às pautas de convívio, esboçadas a partir das rotinas, das expectativas e dos valores característicos das relações escolares, os quais balizam o que fazemos e o que pensamos sobre o que fazemos no dia-a-dia. Uma espécie de norte e, ao mesmo tempo, de combustível das relações – ambos deflagradores dos laços de respeito e parceria entre alunado e agentes escolares. Daí a proposta do contrato pedagógico.

A população, em especial, deposita fé em escolas que incentivam a promoção da cidadania, a visão crítica da realidade e a construção da participação social. Viver democraticamente pressupõe o livre fluxo das ideias, independente de sua popularidade, que permite às pessoas estarem tão bem informadas quanto possível. Acredita também na capacidade individual e coletiva de as pessoas criarem condições de resolver problemas. Tais posturas exigem o uso da reflexão e da análise crítica para avaliar ideias, problemas e políticas. Em termos éticos, viver democraticamente demanda preocupação com o bem-estar dos outros e com o “bem comum”, além de preocupação com a dignidade e os diretos dos indíviduos e das minorias. Por essas razões, não poderá haver democracias sustentáveis se não contarmos em escolas orientadas para a defesa intransigente da liberdade, da dignidade, da justiça, do respeito mútuo e demais motivos edificantes.

Sistema aberto em interação com o meio, a escola não pode ficar imune às tensões e desequilíbrios da sociedade envolvente e, por isso, poderá ver-se a indisciplina que atualmente perturba a vida de muitas escolas como um reflexo dos conflitos e da violência que grassa na sociedade em geral. As desigualdades econômicas e sociais, a crise de valores e o conflito de gerações são alguns dos fatores que podem explicar os desequilíbrios que afetam tanto a vida social como a vida escolar. Daí o inegável fato de que a educação contemporânea tem produzido o domínio disciplinar-atitudinal em detrimento do âmbito propriamente pedagógico-intelectual.

Educar é tomar partido da autonomia na luta contra os mecanismos opressivos que tomam conta da sociedade. Lamentavelmente, nem sempre essa força consegue superar a força centrípeta do egoísmo e nem sempre a nação dispõe de uma força motora para o progresso. Além disto, quando a política não é capaz de mover a nação ao progresso, a sociedade fica para trás em pobreza, violência, desigualdade, desencanto. Face ao exposto, uma escola sem partido lava perigosamente as mãos e, assim, comete uma série de assassinatos, a começar pela corrosão do caráter intelectual e sensível. Fica a pergunta no ar – escola: adaptação ou transformação social? Fazendo-se de agentes da neutralidade ideológica, as vozes conservadores ignoram cinicamente o abismo que separa o Brasil real do Brasil fictício. A respeito, muito tem a colaborar as reflexões trazidas pelo jornalista Carlos Alexandre, no Correio Braziliense, de 7/6/2016: “A cada dia que passa, torna-se evidente que a miséria brasileira não é apenas um problema econômico. Nossa sociedade bárbara está desprovida de educação, tolerância, respeito, cidadania, igualdade. Na ausência do Estado, prevalece o poder das armas, do machismo, da corrupção, da intolerância, do obscurantismo”.

Conforme explica Olgadir Amancia, professora da UnB: “o Projeto Escola sem Partido apresentado no Congresso Nacional pelo deputado Izalci Lucas (PSDB/DF), assim como similares encaminhados em diferentes assembleias estaduais e municipais, representa um ataque à educação, ao pluralismo de ideias e à autonomia dos educadores. Usando o falso argumento da ideologização da educação, da partidarização da escola, objetiva amordaçar professores, obstruir a construção dialógica e crítica do conhecimento. Busca impedira a escola de cumprir o seu papel constitucional de formação com vistas ‘ao pleno desenvolvimento da pessoa’ e para ‘o exercício da cidadania’, como prevê o artigo 205 da Constituição Federal de 1988”.

Alguns retrocessos na defesa da neutralidade e no elogio da etiqueta social encontram-se entrelaçados neste tipo de escola distante do mérito questionador que a define radicalmente. Exemplo: “Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Contudo, a independência de pensamento crítico é uma meta fundamental da escola. E essa meta depende, sim, de professores que trabalham com independência.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.